Carro de boi
Por Raul Fernandes*
Mossoró era
a primeira cidade do estado, depois da capital. De clima quente, situada em
terreno calcário, pobre em água potável, trazida em pipas, do lugarejo Bom
Jesus, a dois quilômetros. O vento alísio, à tardinha, amenizava o calor.
No princípio das férias escolares, algumas famílias se preparavam para passar meses na praia de Tibau, no limite
com o Ceará. Ficava a oito léguas de distância. Fiz esta viagem aos doze anos.
Dias antes começavam as arrumações. Em sacos e trouxas, guardávamos objetos
caseiros, redes, roupas, lençóis e alimentos.
No dia marcado, levantávamos
cedo. Minha mãe, os quatro filhos, duas empregadas – a preta Sinhá, Rosa, filha
de escravos, e uma índia jovem, filha de caboclos. Aguardávamos a partida. Às
seis horas, o carro-de-bois estava pronto. A capota de esteira feita com palha
de carnaúba, protegia os viajantes contra o sol e a chuva. Puxado por três a
quatro juntas de bois, sendo a primeira ao pé do carro, a mais forte. Ligadas
por um cambão – trave que passava por cima dos pescoços, formando a parelha.
Também, conhecida por ‘canga dos bois’. Dois paus de madeira forte enfiados no
cambão, ficavam de cada lado do pescoço da rês, dificultando os movimentos da
cabeça. Na longa viga, saída do centro do carro, o timão, atrelavam a parelha
e, no cabeçalho, prendiam a canga. Boi acostumado a puxar carro era chamado
boi-de-cambão.
O carreiro portava relho e vara
com ferrão para tanger mais animais. Em geral, viajava sentado numa das quinas,
à frente da carroceria, com as pernas para fora. Levava um jovem companheiro,
montado num burro, que cavalgava à frente ou atrás da viatura. Atendia a
mandados e tratava as rezes. Embaixo do estrado, penduravam
dois grandes chifres – um com sebo e outro com carvão vegetal pulverizado. A
mistura dessas substâncias colocavam nos cocôs, em contato com o eixo das
rodas. Quando em movimento, produzia grande rangido e evitava incêndio.
Preso ao veiculo, havia dois sacos
de couro curtidos, com gargalos e tampas, cheios de água. Serviam aos
passageiros e aos animais. No estrado além dos pneus dos lados, os fueiros,
fixavam um banco à frente e dois atrás, sendo um de cada lado. Após o café da manhã, cada pessoa,
carregando sua bagagem, tomava o transporte. Pouco depois das seis, partíamos,
ante os gritos aboiantes do carreiro: “Ei, boi!”. Repetido, a todo instante. O
soar do eixo, rodando, era ouvido ao longe, assim, deixamos a cidade. Íamos
viajar o dia todo. Às 10 horas e meia, paramos num sítio, no lugar Grossos.
Descemos para almoçar. Bois foram desencangados, levados a beber água, pastar e
descansar.
Às duas e trinta da tarde,
atrelaram outros bois e partimos. Às cinco horas, avistamos Tibau e, em meia
hora, estávamos em casa. Habitação de taipa, alpendrada, coberta de palha de
carnaúba e rebocada de barro amarelo. Ficava na praia, ao pé do morro. Da
cacimba rasa no quintal, fluía água claríssima. Os recém-chegados trataram de
armar as redes e procurar acomodações. Perto, mais ao norte, destacava-se uma
residência. Tinha ao lado um riacho estreito de água límpida, que descia do
morro através de bicas. Usada para beber e banhos. Caía, de quase três metros
de altura dentro do tanque da pequena casa. Chamavam de ‘Pinga’ e recebia o
nome do dono. Era o ‘Pinga do doutor Castro’. Médico famoso da cidade e
veranista assíduo do lugar.
Praia rica em peixes e camarões,
apanhados em tresmalhos. Pescadores trabalhavam, apenas, duas vezes por semana.
Passavam parte do tempo, tomando aguardente. Costume esse desde os primórdios
do Brasil. Naqueles idos pagamento pelo corte do pau- brasil era feito com a
cachaça conhecida por ‘Jeribita’.
A população de todas as aldeias na
costa era de índios. As esposas, no alpendre das casas, sentadas no chão,
tinham à frente almofadas com bilros e linhas. Faziam renda para vender. À
tardinha, boa parte delas estavam embriagadas.
Outra curiosidade, decorria haver
entre eles, famílias brancas de olhos azuis e de cabelos louros. Descendência
de franceses ou holandeses, os primeiros colonizadores da região.
O Rio Grande do Norte teve a maior
concentração indígena do país. Fugiam de Pernambuco e da Paraíba para o nosso
estado. Recordo que, numa tarde, sob forte
tempestade, chegou um carro-de-boi a Tibau, conduzindo parte da família do
farmacêutico de Mossoró, Jerônimo Rosado. Foi motivo de satisfação para os
poucos veranistas, a chegada, sem danos dos viajantes.
Terminada as férias, regressamos
da mesma maneira.
As areias das dunas, de tonalidades
diversas, ofereciam paisagem sui generis ao visitante. Atualmente, estradas,
construções habitacionais e o progresso mudaram essa imagem. Alteraram as
alegres recordações.
*Raul Fernandes, nasceu em Mossoró, em 1908, filho do
prefeito Rodolfo Fernandes e Isaura Fernandes Pessoa. Era médico e escritor, autor do livro A Marcha de Lampião,
dentre outros. Nesse texto, Raul Fernandes descreve a Tibau de 1920, quando ele
tinha doze anos de idade.